Brasília, 25 de novembro de 2025
Nós, mulheres negras brasileiras, em nossa pluralidade, irmanadas às mulheres de toda diáspora e africanas, estamos novamente em Marcha por Reparação e Bem Viver. Assim como em outras ocasiões, saímos às ruas para reafirmar as nossas lutas e o nosso papel na sociedade, tendo em vista a conquista e salvaguarda da nossa emancipação e autonomia.
Saímos às ruas para explicitar que sem Reparação não há possibilidade de democracia, justiça, igualdade e equidade em todos os domínios da vida humana. Considerando que ainda vivemos sob a lógica de relações de poder fundadas no colonialismo e escravidão; na era das catástrofes climáticas, que coloca ainda mais em risco as existências negras e de toda a biosfera; convocamos as mulheres negras de todo o mundo para, irmanadas, exigir Reparação histórica e construir as sociedades de Bem Viver que sonhamos.
Marchar por Reparação e Bem Viver exige a adoção de um amplo programa que se distancie das propostas desenvolvimentistas em curso, algumas indisfarçavelmente bélicas, e de uma visão que nos exclui do exercício do comum.
Nosso projeto político é constituído de outras matrizes, de outros saberes e fazeres, de outras cosmopercepções e filosofias, o que significa a luta constante contra o racismo patriarcal.
Sabemos, entretanto, que o êxito das nossas reivindicações só é possível se houver a responsabilização das partes que lucram há séculos com o projeto político que nos desumaniza e inviabiliza o papel de sujeitas de nossa história e de toda a coletividade.
Depois de dez anos da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, em 2015, afirmamos que o avanço do fascismo, da cultura do ódio e da expropriação dos bens públicos e naturais agravou o contexto político e social no cenário mundial, regional e nacional.
Reparar para reinventar o mundo
A escravidão operou de forma a subtrair as humanidades e subjetividades das pessoas negras em todo o mundo, a partir da retirada do direito ao próprio corpo – objetificado e comercializado; e a expropriação de nossos nomes, famílias, culturas e territórios. Tal crime, de lesa humanidade, foi orquestrado com aval, e muitas vezes protagonismo, da igreja católica, responsável pela imposição de um monocultura cristã e consequente violação da liberdade religiosa.
Por quase 400 anos, o sistema econômico vigente no que veio a se tornar o Brasil foi centrado na escravidão. Depois disso, a ausência de políticas de amparo e compensação à população negra no pós-abolição favoreceu o agravamento das hierarquias sociais baseadas em raça. Desse modo, é preciso que se diga que Reparação, um dos eixos centrais da Marcha Global das Mulheres Negras, impulsiona um diálogo consistente com o Estado brasileiro, pois a escravidão, enquanto acontecimento histórico dos mais violentos e de longa duração, promoveu desigualdades abissais que não são meramente eventos que ficaram congelados no passado, se perpetuam até hoje mediante os parâmetros de colonialidade.
Desta forma, Reparação, no contexto brasileiro e na perspectiva das mulheres negras, é a criação e implementação de ações coletivas simbólicas, políticas e materiais, que revertam os impactos da escravidão e colonização, e corrijam as injustiças que se mantêm no presente, em todos os âmbitos sociais. Por isso, a pauta da redistribuição das riquezas e das iniciativas sistêmicas para compensar injustiças nos são tão caras. Não é à toa que insistimos na garantia do direito à vida com liberdade e autodeterminação, à educação, seguridade social, segurança, justiça racial, memória, cultura, e direito à terra e ao território – livre da violência policial e da narco milícia.
Medidas reparatórias devem ser adotadas com investimentos não só em políticas públicas efetivas que reconheçam o processo histórico de violações de direitos, mas também a partir da garantia do protagonismo e autonomia das mulheres negras na proposição e gestão de ações diversas, inovadoras e radicais. Compromisso este que deve ser adotado também pelas instituições não estatais que nasceram, lucraram e se consolidaram a partir da exploração da população negra, a exemplo dos grandes latifúndios e agronegócios, bancos públicos e privados, e as Igrejas Católica e Protestantes.
Na tarefa da Reparação, o cultivo da memória é elemento central. Só é possível reparar se há o reconhecimento dos lucros e danos da colonização e da escravidão para os diferentes povos. O Brasil, país com maior população negra fora do continente africano, último a abolir legalmente a escravidão e cuja identidade nacional foi forjada pela mitoideologia da democracia racial, segue atrasado nesse reconhecimento público e na promoção de justiça reparatória.
O Brasil, e os os estados do continente americano, se constituíram enquanto nação a partir do aniquilamento de povos indígenas e da subjugação de povos africanos traficados. No momento em que se viu impossibilitado de manter a escravidão legalmente em decorrência do volume das insurgências negras e das pressões na comunidade internacional, adotou o que historiadores denominaram de abolição nas legislações editadas à época.
Antes da oficialização da abolição da escravidão no Brasil, com a Lei Áurea, em 1888, outras legislações abolicionistas foram criadas, como a Eusébio de Queiroz (Lei nº 581 de 4 de setembro de 1850), a Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871), e a Lei dos Sexagenários (Lei nº 3.270 de setembro de 1885). Embora muitas vezes contadas pela historiografia da branquitude como benéficas para a população escravizada da época, na verdade criaram diversos obstáculos à liberdade, bem como estabeleceram indenizações e outros privilégios para os escravocratas. Ou seja, a elite escravista lucrou mesmo com o processo de abolição. Dentre essas legislações, também foram limitados o acesso de africanos livres no país e incentivada a imigração de europeus para a criação da classe de trabalhadores livres, em detrimento da integração ao mercado de trabalho e assistência aos ex-escravizados.
Ainda é importante lembrar que o Brasil se fundou a partir do loteamento de territórios como capitanias hereditárias, que foram distribuídas pela Coroa Portuguesa a famílias brancas que as administravam, mas cuja propriedade permanecia sendo do colonizador. O acesso à terra, portanto, foi expropriado dos povos originários e inviabilizado aos africanos traficados e seus descendentes a partir de legislações que definiam que a aquisição de terras só seria possível a uma elite agrária e para imigrantes europeus empobrecidos.
Essa negação histórica de acesso à terra à população negra redundou em conflitos agrários que ainda enfrentamos, com as violações aos povos e comunidades tradicionais, bem como a favelização e criminalização de territórios negros urbanos que sofrem com a falta de regularização e a inviabilidade de garantir o direito de propriedade sobre os imóveis. Além do Estado brasileiro e das famílias herdeiras das capitanias hereditárias, a Igreja Católica também é legatária dessa distribuição de terras, concentrando o direito de propriedade em muitos territórios, o que ainda hoje faz permanecer se beneficiando economicamente com a cobrança de taxas de até 5% do valor do imóvel – nas transações de venda de bens oriundos da distribuição colonial.
Esses são apenas exemplos de ações do Estado Brasileiro que geraram, sob a justificativa de envidar esforços abolicionistas, o endosso à mercantilização das vidas negras e provocaram a submissão da liberdade à retirada da dignidade individual e coletiva da população negra.
Lélia Gonzalez costumava dizer que africanas e africanos civilizaram este país porque deram a ele um povo. Como as elites sempre foram anti-povo, precisamos inserir nos debates sobre a cidadania mutilada, ou a falta dela, os marcadores estruturais da diferença. O tema da Reparação é chave importante para a instauração de um sistema político, econômico e social sob outros parâmetros para o pacto civilizatório.
Neste momento que o Congresso Nacional debate o Projeto de Emenda Constitucional nº 27/2024 para o Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial, é imprescindível que hajam estudos mais aprofundados para aproximar do real montante da dívida histórica no campo financeiro, patrimonial e cultural que o Brasil tem com a população negra.
Reparar, então, é pressuposto básico e indispensável para a construção da sociedade de Bem Viver, este que é o nosso paradigma utópico, mas sobretudo nosso farol para marchamos em direção ao futuro que desejamos para todas as pessoas.
Do Bem Viver emerge um novo código sociopolítico em que a justiça, a equidade, a solidariedade e a vida digna são valores inegociáveis, consolidados pela pluralidade de vozes que coabitam o planeta. Inspiradas nas concepções milenares africanas e indígenas que dão sustentação ao termo e que modulam o social e político (além da nossa ancestralidade negra, bebemos também da fonte dos povos andinos), adotamos princípios plurais que englobam novas perspectivas de gestão do coletivo e do individual, da natureza e da cultura, das formas que dão sentido e valor à nossa existência baseada em uma visão utópica de vida.
A combinação dos dois termos – Reparação e Bem Viver – quer sinalizar para a relação inseparável entre ambos, pois só alcançaremos o Bem Viver se houver ações concretas de Reparação que reconheçam a centralidade da participação ativa da população negra na construção das nações no Brasil e no mundo. Desta forma, Reparação e Bem Viver constituem o enunciado que expressa a força política das mulheres negras e reascende para a comunidade global o espírito da transformação do qual o mundo necessita para construirmos um presente e um futuro em que caibam todas as pessoas.
Estamos fazendo Palmares de novo, impulsionadas pelos sonhos de liberdade e emancipação germinados nos territórios negros do mundo!
O fim do mundo ou fim de um mundo?
O projeto de Bem Viver das mulheres negras, para pensar um novo mundo e novas relações sociais, parte do pressuposto de que precisamos – toda a humanidade – rever nossa relação com a natureza, com os demais seres vivos e, sobretudo, desarticular a relação de dominação, extrativismo e exploração mantida até então. Nós não somos o topo da cadeia, somos parte integrante dela e não devemos alimentar a crença antropocêntrica-colonial no nosso poder absoluto sobre o todo, o que tem gerado a catástrofe secular que agora chamamos de crise climática. Não há dúvidas que esse padrão vem impondo desafios sobre os modos de organização da sociedade, reforçando para nós o tema da Reparação como transversal e prioritário para construirmos um mundo que leve em conta outras formas de relação com a biosfera e outro diagrama para o exercício da Política. Ou seja, no século XXI, qualquer exame que se faça do contexto global terá que pautar a questão do racismo ambiental.
Falar de Reparação e Bem Viver pressupõe um ajuste de contas com o passado e uma intervenção no presente para efetivação de um tempo futuro com a garantia irrestrita da dignidade humana e de todo ecossistema de vida. A conexão entre esses tempos embasa nossos sonhos e a defesa do Bem Viver.
As mulheres negras entre passado, presente e futuro
Num cenário em que o capitalismo, o racismo e o patriarcado avançam promovendo desigualdades e injustiças, é preciso defender uma política que enfrente essas tecnologias de exclusão.
A Marcha Global das Mulheres Negras é a continuidade de um projeto político que vem sendo gestado por séculos. Aqui reiteramos o que já foi anunciado e proposto na Carta das Mulheres Negras de 2015, reafirmando a radicalidade do nosso projeto político por Reparação e Bem Viver, com a garantia do protagonismo e autonomia das mulheres negras na formulação, gestão, execução e avaliação das seguintes proposições:
1. Reconhecimento público do Estado brasileiro da dívida histórica material e imaterial por ato normativo do Presidente da República;
2. Criação do Fundo Nacional de Reparação para compensação dos prejuízos causados pela escravização e colonização, de duração indeterminada – até a equiparação das condições sócio-econômicas entre os diferente segmentos raciais da população brasileira;
3. Subsídio a projetos de pesquisa específicos sobre a dívida histórica, especialmente focado na investigação de indenizações pagas em decorrência de legislações abolicionistas;
4. Estabelecimento de processos de ressarcimento progressivo pelas famílias e negócios beneficiários das indenizações mencionadas no tópico anterior, que devem ser destinados ao Fundo Nacional de Reparação;
5. Reanálise e anistia de dívidas de financiamentos estudantis da população negra;
6. Reanálise e anistia de dívidas de financiamentos para moradia de pessoas negras;
7. Extinção do Laudêmio para fins de regularização fundiária de imóveis para pessoas negras;
8. Implementação de regimes previdenciários especiais, atentando para as particularidades dos trabalhos informais e garantindo condições especiais de aposentadoria para categorias de trabalhos braçais ocupados majoritariamente por pessoas negras, a exemplo dos trabalho em serviços de construção civil, trabalho doméstico, serviços gerais de limpeza e manutenção, dentre outros;
9. Incentivo e subsídio para a criação de equipamentos/centros de memória (museus, centros de pesquisas, bibliotecas) da escravidão em todos os estados federativos;
10. Emenda Constitucional que preveja a distribuição das vagas nos Tribunais Superiores com proporcionalidade de raça e gênero;
11. Emenda Constitucional que garanta a paridade de raça e gênero em cargos eletivos de todas as casas legislativas e nos poderes executivo.
A despeito de “um passado que não passa”, não somos porta-vozes de um enunciado que considera apenas a violação, a regressão e o rebaixamento. A nossa trajetória nos autoriza a reconhecer os avanços, em virtude das lutas que travamos ao longo da história. Sabemos, no entanto, que é preciso irmos além, é preciso gestar o impossível!
Fonte: https://marchadasmulheresnegras.com.br/manifesto-das-mulheres-negras-por-reparacao-e-bem-viver/